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Grandes Sons

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Grandes Sons

As outras músicas que canta a Rolling Stone

Um excelente artigo de Mário Lopes no Público



A Rolling Stone começou por revelar John Lennon como ninguém o vira. Hoje, senta-se na Casa Branca com Barack Obama e consegue interferir na Administração americana: em Junho, acabou com a carreira do comandante das tropas americanas no Afeganistão, Stanley A. McChrystal. Uma surpresa? Nem tanto, se olharmos para a história de uma revista que sempre desejou ter "uma voz na política".

Em Outubro, Barack Obama, na antecipação das eleições intercalares americanas, sentou-se durante uma hora e dez minutos com Jann Wenner, o fundador da Rolling Stone, na Casa Branca. Falaram do iPod do Presidente, da sua admiração por Bob Dylan e Stevie Wonder, do seu interesse recente em Lil Wayne, o rapper tão talentoso quanto polémico que recentemente cumpriu pena na prisão por posse ilegal de armas. Naturalmente, não tardaram a erguer-se vozes conservadoras questionando o exemplo que passavam à população jovem os gostos de Obama. A música, porém, era na entrevista mero pormenor.

Entrevista de capa, foi um balanço de mandato e de lançamento das eleições intercalares que se aproximavam. Discutiu-se o Tea Party, Wall Street e as expectativas frustradas de muitos apoiantes de Obama. Discutiu-se a crise imobiliária e, dois meses depois, na edição de 25 de Novembro, capa dedicada a Eminem, a revista desmascarava uma sórdida promiscuidade entre o sector bancário e os tribunais da Florida, que julgam casos de conflito entre proprietários e imobiliários à média de 25 por minuto, a esmagadora maioria a favor da banca - não é propriamente tema que se esperaria ver nas páginas da revista, certo?

Pois bem, outro ponto de discussão foi a estratégia americana no Afeganistão e um nome não poderia deixar de ser citado. O de Stanley A. McChrystal, poderoso comandante em quem a Administração confiava para alterar o curso da guerra iniciada por Bush. Stanley A. McChrystal deixou as suas funções em Junho. A demissão foi o desfecho inevitável, depois da publicação de uma reportagem demolidora de Matt Taibi. Na Rolling Stone. Recuemos alguns meses.

Bíblia yuppie

22 de Junho não foi um bom dia para Stanley A. McChrystal, comandante das tropas americanas no Afeganistão e responsável pelas operações da NATO no território. A divulgação online de uma longa reportagem, em que o homem escolhido por Barack Obama para levar a bom termo a desastrosa intervenção surgia como que acossado, desiludido com o Presidente que ajudara a eleger, desconfiado e desdenhoso dos seus parceiros políticos, foi o seu fim.

Naquele mesmo dia, a América e pelo mundo fora comentava-se o artigo. No dia seguinte, McChrystal demitia-se. Dois dias depois, chegava às bancas a revista que enviara o colaborador Michael Hastings, jornalista com experiência tanto no Afeganistão como no Iraque, ao encontro do comandante. A reportagem The runaway General [O General em fuga] não fazia a capa da revista, que não era a Time ou a Newsweek. A revista que terminou com a carreira de McChrystal e que abriu uma discussão no espaço público americano sobre os limites do jornalismo, o seu compromisso com a verdade ou as fronteiras que separam o direito a informar da protecção dos interesses nacionais, exibia na capa dessa edição nada mais nada menos que Lady Gaga. E ver a cantora de Telephone, a nova Madonna, na habitual pose provocadora, curiosamente empunhando duas metralhadoras, nada tinha de estranho. Estava, afinal, na capa da Rolling Stone, a histórica revista fundada em 1967, em São Francisco, por Jann Wenner e Ralph Gleason. Que tenha sido ali revelado o último grande escândalo a abalar a presidência americana, ali onde víramos a última sessão fotográfica de John Lennon (o famoso nu ao lado de Yoko, por Annie Leibovitz), onde víramos Bob Dylan, os The Who ou os Nirvana, parecerá à primeira vista surpreendente. O mundo do entretenimento, do hedonismo, do culto de celebridades, a meter-se em coisas sérias?

Para quem ainda olha a cultura pop como baixa cultura, matéria para adolescentes ou adultos que se recusam a crescer, não faz sentido. Para quem se recorda da Rolling Stone da década de 1990 e do início desta década, transformada em Bíblia yuppie celebrando ad nauseum glórias passadas e incapaz de, no presente, escapar ao brilho do mainstream, aquele parece cenário impossível. E no entanto...

Na mesma edição d'O General em fuga, surgia The spill, the scandal and the President [O derrame, o escândalo e o Presidente], uma outra reportagem em que a Administração americana era acusada de incúria e incapacidade para fazer frente a uma empresa, a BP, que surge na reportagem como uma criminosa ecológica à solta. A Rolling Stone de Junho de 2010 tinha Lady Gaga, Eminem e Elton John; tinha um olhar demolidor sobre os bastidores da guerra no Afeganistão, e o desmascarar da incúria criminosa que conduziu ao desastre ecológico no golfo do México - "o mais devastador ataque em solo americano desde o 11 de Setembro", escrevia-se.

Na primeira edição da Rolling Stone, a 9 de Novembro de 1967, o fundador e editor Jann Wenner escrevia que a revista "não é apenas sobre música, mas sobre temas e atitudes que a música abrange". A 24 de Junho de 2010, questionado acerca do turbilhão político e mediático que a sua revista desencadeara, o mesmo Jann Wenner declarava ao Washington Post: "Há anos que a nossa especialidade tem sido jornalismo de investigação, reportagem de fundo e política. Tem sido uma forte paixão ter uma voz na política nacional." Passaram 43 anos entre a declaração de intenções em editorial e aquele comentário. Quando a primeira foi proferida, a Rolling Stone iniciava um percurso que, na década de 1970, a transformaria não só no mais influente órgão de imprensa da cultura pop, mas na referência de um novo jornalismo, irreverente e provocador, interessado em reportagens de fundo e na marca pessoal que os repórteres imprimissem às peças.

Inspirada na Paris Review

As longas entrevistas, muitas vezes divididas por duas ou três edições da revista quinzenal e inspiradas, segundo Jann Wenner, na mítica Paris Review, deram uma nova profundidade e seriedade na abordagem aos músicos pop, que eram até então, e com excepção da florescente imprensa underground da altura, tratados com uma ligeireza e perspectiva próxima de clube de fãs. Foi à Rolling Stone, por exemplo, que John Lennon deu a sua primeira grande entrevista após a separação dos Beatles, permitindo aceder a um mundo menos colorido do que aquele que poderíamos imaginar: descreveu a existência dos Fab Four como "uma constante humilhação", pelo convívio forçado a que estavam obrigados com políticos, mulheres de políticos ou figuras do jet-set que desprezavam; abriu uma pequena janela sobre as digressões da banda, uma orgia de drogas e sexo nos antípodas da imagem "angelical" projectada; falou com sinceridade desarmante de tudo aquilo que o ligava aos Beatles e daquilo (o desprezo por Yoko Ono) que nunca lhes perdoaria.

Ao longo dos anos, a revista entrevistou naquele formato bem mais que as luminárias da pop. Passaram por elas Marlon Brando, Johnny Carson, Francis Ford Coppola ou Susan Sontag. Mas, talvez mais importante do que as entrevistas era o espaço dado às longas reportagens que expuseram aquilo que veio a chamar-se new journalism, género em que se cruzavam técnicas jornalísticas com técnicas literárias. Parte dos seus maiores expoentes, como Hunter S. Thompson, Tom Wolfe ou, num grau diferente, o crítico musical Lester Bangs, tiveram na Rolling Stone uma casa privilegiada. The Right Stuff, livro de Wolfe editado em 1979, teve a sua génese numa reportagem sobre a última missão espacial à Lua da NASA, a Apollo 17. O mesmo aconteceu com o famoso Fear and Loathing in Las Vegas, a obra mais conhecida de Hunter S. Thompson, levada ao cinema por Terry Gilliam em 1998. Thompson será, de resto, um dos mais emblemáticos representantes da Rolling Stone enquanto espaço de liberdade de escrita, de iconoclastia e de afronta ao politicamente correcto. Em 1994, foi o autor do obituário de Richard Nixon. Título: Ele era um bandalho. Num texto arrasador, descreveu o antigo Presidente como um "texugo" que se deitava de costas e emitia um cheiro a morte para confundir os adversários, atacando-os desprevenidos. No texto refere: "Se as pessoas certas estivessem encarregues do funeral de Nixon, o seu caixão teria sido lançado num daqueles esgotos a céu aberto que são despejados no oceano a sul de Los Angeles"; e "Nem precisavas de saber quem Richard Nixon era para ser uma vítima do seu espírito horroroso, nazi", vociferava algures.

Lula vampiro

Aquilo em que a revista se vem destacando actualmente, contudo, não se prende com os textos provocatórios, ricos em linguagem, em humor e em bílis, de que Thompson era expoente máximo. Curiosamente, a revista que se fundou pela música, baptizada com uma canção de Muddy Waters, é hoje uma das que abordam o fenómeno musical da forma mais conservadora e alheia ao risco. A forma como aborda o resto, porém, devolveu-lhe o estatuto. Foi o jornalismo de investigação da Rolling Stone que a tornou novamente citada, comentada e influente.

O ano passado, num texto sobre o poderosíssimo banco de investimento Goldman Sachs, o jornalista Matt Taibi acusava a empresa de ter engendrado todas as maiores manipulações de mercado desde a Grande Depressão e descrevia-a como "uma grande lula vampiro enrolada na face da humanidade" - a expressão entrou, desde aí, no léxico americano sempre que a crise financeira é referida.

Já em Junho deste ano, o mesmo Matt Taibi, num artigo debruçado sobre a falência de dois pesos-pesados da banca americana, o Bear Sterns e o Lehmann Brothers, referia-se aos gigantes do sistema bancário dos Estados Unidos como um grupo de hienas que, depois de se banquetearem com a classe média até nada sobrar, começaram a atacar-se mutuamente, num perverso processo autofágico - isto em textos onde se dispensa o tom coloquial em favor de uma linguagem directa que não se exime de recorrer regularmente ao calão.

A abanar o poder

Hoje, quando já não tem o lastro iconoclasta do passado, quando já não representa a contracultura, quando é de facto um império mediático e uma marca alargada para além da imprensa - este Verão abriu em Hollywood o Rolling Stone Restaurant -, a revista parece recuperar a capacidade de marcar o seu tempo. Não com o vívido "new journalism" de Wolfe ou Thompson, não tanto com a música que chama às suas páginas, mas pelo investimento num jornalismo de investigação capaz de abanar os centros de poder - o que é certamente um bom exemplo, num momento em que a imprensa passa por um momento de crise e de redefinição, com um drástico desinvestimento nas suas funções de vigilância e questionamento dos corredores do poder.

Com Lady Gaga na capa, a Rolling Stone fez cair o mais importante militar americano em funções. Agora, Barack Obama, que a revista retratou em capa como salvador beatífico, que a revista, depois, criticou duramente pelos falhanços da sua Administração, acolhe-a como veículo privilegiado para passar a mensagem democrata, pouco antes de umas eleições cruciais. O fundador Jann Wenner, tão famoso pela capacidade empreendedora como pela vaidade à beira da arrogância, deve sentir-se orgulhoso.n


Mário Lopes

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